Trabalho realizado pela Piscóloga Berlize Anschau com parcerias e publicado na Revista Kairós Gerontologia, conforme segue:
“Anschau, B. R. E., Cabral, S. M., Cunha, G. L. da, Peixoto, M. C., Moura, E. P. G. de, Santos, G. A. dos. (2015, julhosetembro).
Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos
Revista Kairós Gerontologia, 18(3), pp. 417-432. ISSNe 2176-901X. São Paulo (SP), Brasil: FACHS/NEPE/PEPGG/PUC-SP
Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos
Family, Work, And Memories: A study in the City of Ivoti(RS) with women older than 60 years old
Berlize Regina Elias Anschau
Sueli Maria Cabral
Gilson Luís da Cunha
Maristela Cássia Peixoto
Eliana Perez Gonçalves de Moura
Geraldine Alves dos Santos
RESUMO: O objetivo deste estudo foi compreender quais influências familiares levam mulheres idosas a permanecerem ativas no mercado de trabalho. O delineamento do estudo é qualitativo, exploratório e transversal. As oito participantes foram submetidas a uma entrevista semiestruturada. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo de Bardin. Os resultados demonstraram forte influência familiar no processo da inserção e permanência no mercado de trabalho, produzindo benefícios, além da dimensão econômica.
Palavras-chave: Envelhecimento bem-sucedido; Idosas; Família.
ABSTRACT: This study aimed to understand which family influences lead elderly women to remain active in the labor market. The study design is qualitative, exploratory and cross sectional. The 8 participants underwent a semi structured interview. The data were submitted to Bardin content analysis. The results showed strong family influence in the process of entering and remaining in the labor market, producing benefits beyond the economic
dimension.
Keywords: Successful Aging; Elderly Women; Family.
Introdução
O número de pessoas que chegam à velhice se manteve reduzido até o século XIX, momento em que se iniciou o desenvolvimento de áreas como a saúde e a educação, que proporcionaram aumento na expectativa de vida da população. Durante a história da humanidade, a proporção do número de idosos em relação ao de jovens sempre foi consideravelmente inferior, devido às difíceis condições de sobrevivência. A média esperada de vida, até o século passado, nunca se manteve muito superior à faixa dos trinta anos; isto diferencia de maneira importante o conceito de envelhecimento que possuímos atualmente (Santos, & Vaz, 2004). Estudos têm divulgado o significativo crescimento da população idosa. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o alargamento do topo da pirâmide etária pode ser observado pelo crescimento da participação relativa da população com 65 anos ou mais, que era de 4,8% em 1991, passando a 5,9% em 2000, e chegando a 7,4% em 2010 (IBGE, 2012). Soma-se a isso o fato de que, em 2011, as mulheres eram maioria na população de dez anos ou mais de idade, cerca de 53,7%. Contudo, elas eram minoria (45,4%) na população ocupada. Essa estrutura distributiva reflete-se no nível de ocupação, relação que mostra o contingente de ocupados em relação ao total da população. Para as mulheres, esse indicador foi de 40,5% em 2003, passando para 45,3% em 2011 (IBGE, 2012).
Na comparação com 2003, o crescimento da participação das mulheres na população economicamente ativa foi de 1,8 ponto percentual (de 44,4% para 46,1%). A análise por grupos etários mostrou que, em 2011, cerca de 63,9% das mulheres ocupadas tinham entre 25 e 49 anos de idade. Entre os homens, este percentual foi de 61,0%. A proporção da população feminina de 50 anos ou mais de idade na população em idade ativa era de 31,4%, enquanto a dos homens foi de 26,9%. Já as mulheres ocupadas com 50 anos ou mais de idade alcançavam 20,9%, percentual próximo ao dos homens ocupados nessa mesma faixa etária, de 22,9%. Comparando-se com os resultados de 2003, o grupo de pessoas com 50 anos ou mais idade, foi o que teve maior crescimento na população ocupada, aproximadamente, 5,0 pontos percentuais para ambos os sexos. Vale ressaltar, porém, que esse grupo etário foi o que mais cresceu na população em idade ativa nos últimos anos: de 23,3% em 2003, para 30,1% em 2011, contra 44,9% em 2003; para 43,4% em 2011, na faixa de 25 a 49 anos de idade. Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos 419. Dessa forma, pode-se perceber que o envelhecimento da população ocupada reflete o da população em geral (IBGE, 2012). A realidade é que, ainda, temos que pesquisar elementos que se mantêm obscuros no processo de envelhecimento, pois ele é permeado por muitas variáveis como a genética, o meio ambiente, o nível socioeconômico, a família, a personalidade, a alimentação, além de uma série de outras. Estas informações, quando reunidas através de estudos interdisciplinares, nos permitirão elaborar métodos de pesquisa que atinjam os questionamentos que o homem tem formulado há séculos em relação ao bem-estar nas idades avançadas e consequentemente elevar a expectativa de vida, desde que saudável e desfrutável (Santos, & Vaz, 2004). Viver muito, e chegar à velhice com toda a disposição para continuar com as atividades desenvolvidas anteriormente, é algo que tem atrapalhado políticos, economistas e, inclusive, abalado a dinâmica das famílias que ainda não sabem lidar com os membros mais velhos. Dentre as várias dificuldades encontradas pela sociedade moderna, em relação à nova geração de idosos, encontra-se a questão da aposentadoria, do status social e da sexualidade que se associam a vários outros, formando uma rede de estereótipos que impedem as pessoas de viverem esta fase de suas vidas. Darnton-Hill (1995) compreende a necessidade, diante das mudanças que estão ocorrendo, de reavaliar as antigas teorias utilizadas, até o momento, sobre o processo do envelhecimento. Urge a adaptação das antigas teorias e a realização de novas pesquisas sobre o que está acontecendo com essa nova geração de idosos. Diante desta realidade, novas demandas sociais têm exercido pressão sobre pesquisas no âmbito do envelhecimento humano. Neste sentido, os estudos de Baltes e Baltes (1990) propõem que o processo de interação contínua gera uma agenda de desenvolvimento cuja influência se sobrepõe à ontogênese. Segundo estes pesquisadores, o contexto histórico-cultural oferece ao ser humano a oportunidade de uma interação contínua que é fundamental à
sua socialização. O conceito de envelhecimento bem-sucedido apresenta caráter individual e abarca uma diversidade de variáveis para o entendimento de uma velhice com sucesso. “Isso está diretamente relacionado às competências que aquele indivíduo possui e a seus domínios de funcionamento” (Almeida, & Stobäus, 2013, p. 222). O principal aspecto da velhice bem-sucedida diz respeito ao conhecimento sobre a natureza do desenvolvimento do curso de vida e da condição humana e como esse conhecimento pode ser útil ao manejo dos altos e baixos da vida cotidiana (Neri, 1995). Este saber é frequentemente considerado como desempenho de alto nível, talvez até representativo do estágio final das possibilidades de desenvolvimento do conhecimento humano, uma vez que diz respeito aos procedimentos relativos aos fatos, e de julgamento para lidar com a pragmática fundamental da vida, a assuntos importantes, mas controvertidos (Smith, & Baltes, 1993). Sendo assim, a solidão é um estado da falta da sociabilidade. A solução se apoia nas relações com gerações mais jovens. O lazer, a descontração, a cultura, praticados inter geracionalmente, e inclusive o trabalho, possibilitam os contatos e enriquecem a vida de todos no que refere a conhecimento e intercâmbio. Nesta perspectiva, Moragas (2010, p. 104) afirma que À medida que as pessoas envelhecem, diminuem as oportunidades que lhe são oferecidas. É frequente o caso de pessoas que mantêm uma motivação elevada até a morte. A motivação se transfere das atividades de direção ou administração, caracterizadas pela competição, para postos puramente de profissionais como assessoria ou de pesquisa. A motivação baseada nestes postos adquire uma competência, que não somente não se perde com a idade, mas também pode manter-se e até melhorar. Para o autor, portanto, as motivações são impulsos que mantêm as pessoas em ação. A intensidade das motivações está relacionada com a probabilidade de atingir os objetivos a que se propuseram. Há de se ressaltar que a família possui um lugar privilegiado na construção social da realidade; ela constitui o material de que se constroem os arquétipos sociais e os mitos. Para
Saraceno (1997), a família – que possui formas diferentes na sociedade – é um espaço simbólico e historicamente construído. A autora afirma que o: espaço ao mesmo tempo físico, relacional e simbólico aparentemente mais
conhecido e comum, a ponto de ser usado como metáfora para todas as situações que têm a ver com espontaneidade, com a naturalidade, com o reconhecimento sem necessidade de mediação – «somos como uma família», «uma linguagem familiar», uma «pessoa da família» -, a família revela-se como um dos lugares privilegiados de construção social da realidade, a partir da construção social dos acontecimentos e relações aparentemente mais naturais (1997, p. 5). Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos 419 As relações familiares podem ser constituídas de cuidado e responsabilidade, mas
igualmente da vulnerabilidade e das ausências. Elas podem ser estabelecidas por uma afetividade protetora e, ao mesmo tempo, produzir danos permanentes. Pensar as relações familiares a partir de mulheres com mais de 60 anos é considerar as experiências oriundas de processos de internações que propiciam em alguns casos perceber que os vínculos construído e vivenciados transformam a família numa ponte entre o mundo público e o local de
privacidade. Sob tal perspectiva, surge o objetivo central do presente estudo: Compreender quais as influências familiares que compõem os fatores que levam a mulher acima de 60 anos a optar por permanecer ativa no mercado de trabalho.
Método
A presente pesquisa tem um delineamento descritivo transversal qualitativo, cujo foco foi o de compreender as motivações de mulheres acima de 60 anos que residem no município de Ivoti (RS) a manterem-se ativas, e a influência familiar neste processo. Este delineamento permitiu perceber elementos do trabalho feminino a partir da perspectiva das idosas, aprofundando suas experiências, pontos de vista, opiniões e significados. Participaram da pesquisa oito mulheres com 60 anos ou mais, ativas economicamente, selecionadas aleatoriamente na comunidade do município de Ivoti (RS). Em conformidade com a resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e com as normas internas do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Feevale, todas as participantes deste estudo assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Foi utilizada a análise de conteúdo dos dados coletados proposto por Bardin (2011), que propõe três etapas para sua realização. Primeiramente foi feita a pré-análise, fazendo uma leitura prévia do conteúdo, organização, sistematização e categorização das ideias. Na segunda fase, o conteúdo foi explorado e agrupado por categorias delimitadas. Na última etapa, os resultados foram interpretados. Do grupo pesquisado, as idades variaram entre 60 a 80 anos, com uma média de 67,3 anos, o estado civil predominante foi o casado, e a área de atuação de 50% do grupo foi
relacionada à educação.
Apresentação e Discussão dos Resultados
A família é conhecida como pequena célula social em que os comportamentos entre seus membros se entrelaçam e marcam os indivíduos, muitas vezes de forma determinante. Estas são as relações familiares e nos é impossível entender o sistema familiar sem vislumbrar o contexto social e histórico em que ele está inserido. A família ensina, de certa forma, a seus membros o comportamento dentro e fora das relações familiares em qualquer que seja a
situação, cumprindo assim um papel na sociedade (Kupfer, 1992). Eizirik, e Bassols (2013) nos trazem que as transformações familiares desenvolvem-se em condições históricas, culturais e socioeconômicas específicas, que têm fundamental importância para a compreensão profunda dos fenômenos que perpassam o indivíduo. As interações e os relacionamentos adultos são grandemente influenciados pelas primeiras experiências da infância. As primeiras relações, aquelas que ocorrem dentro da família nuclear, são frequentemente definidoras. Todos os
relacionamentos posteriores são influenciados pelos modos como essas primeiras relações se formam e se mantiveram. Os modelos básicos entre criança e mãe, criança e pai e criança e irmão são os protótipos segundo os
quais os contatos subsequentes são inconscientemente avaliados. Os relacionamentos posteriores, são recapitulações das dinâmicas, tensões e gratificações que ocorreram na família de origem (Fadimam, & Frager,
2004, pp. 45). A participante 2 desta pesquisa nos trouxe, na sua fala, a maneira simples com que foi criada, e como seus pais exerciam a paternidade e maternidade. Nesta declaração, percebemos também qual o modelo de cuidados com que seus pais lidavam com ela e com seus irmãos e que este foi adotado posteriormente: “A minha mãe era professora e o meu pai era agricultor; então, eu nasci embaixo de um pé de aipim, no modo de dizer. Assim me criei. Meu pai me levava pra roça enquanto a minha mãe ia para escola e eu gostava disso, e depois a gente (junto com irmãos) ia com ela para escola. E isso me incentivou também. Quando maior, a gente ajudava os menores.” Também na fala da participante 1, percebemos o envolvimento dos membros entre si: “Morávamos no meio do campo e quando a minha mãe viu, eu estava lendo. Vim de uma Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos 419 família simples, bem pobre. Tinha irmãos mais velhos e por curiosidade me metia nas atividades deles e aprendi a ler”. A família funciona como importante fundamento para a transmissão psíquica entre as gerações, que se organiza, sobretudo, no espaço interpsíquico do
grupo familiar (Passos, & Polak, 2004). A participante 7 também trouxe uma lembrança sobre um acontecimento de sua infância: “Então, como nós éramos crianças pobres e colonos, não eram necessários esses brinquedos prontos e eu acho que a criança tem que aprender a fazer os seus brinquedos. Eu me lembro de que o meu irmão criava suas brincadeiras. Uma vez, ele fez todo o sítio onde morávamos com papel, madeira e outros materiais. Primeiro fez uma casinha. E ele ficava sentado lá dentro da nossa casa, bem quietinho e ninguém olhava o que ele fazia e
ele também não mostrava. Daí um dia ele mostrou, ele fez uma carreta com cavalos e tudo como é na vida real, ele fez e ninguém ensinou.” A participante 4 nos diz: “Meu pai era um anjo na Terra. Ele gostava de cantar, ler e
por isso, eu leio a Bíblia até hoje. Nós líamos juntos a Bíblia”. A participante 4 nos trouxe na sua fala, sobre a paciência do pai em lidar com seus filhos e sobre a sua dedicação com eles e de como ficou marcado nas memórias desta participante: “O pai nos pegava – todos pequeninos, pegava os pelegos e deitávamos lá fora, e ele mandava contar estrelinhas”. Segundo Kupfer (1992), no interior de uma família, entendida como um módulo social
montam-se pequenos “eus”, cujo estofo são as identificações com seus pais, com seus traços, seus valores e seus ideais. A participante 4 completa a ideia: “[…] Agora eu sei o porquê, porque olhar as estrelas dava sono, e a gente dormia. Depois ele (o pai) recolhia um por um (dos filhos) e levava para cama”. A memória do afeto e da representação constitui um traço que poderá seguir um destino no inconsciente, mantendo-se ativa além do recalque e da consciência do sujeito (Correa, 2003). A participante 7 também nos trouxe na sua fala as recordações do afeto de seu pai: “Ele era muito legal, até se via nos olhos dele, ele era feliz e ajudava quem precisava”. Tornou-se incontestável hoje a existência de um psiquismo familiar, formado a partir de um jogo de reflexos que envolvem conteúdos intrapsíquicos de cada membro individual do grupo. Sua função central seria promover o partilhamento inconsciente pelos membros do grupo, de modo a organizar um funcionamento intersubjetivo e um sentido para o “estar junto” (Passos, & Polak, 2004). A participante 7 declarou um reconhecimento à preocupação e zelo de um pai com suas filhas no momento que elas saiam de casa para procurar rumo na vida, ou seja, estabelecerem-se como pessoas trabalhadoras. “A primeira vez que nós, eu e minha irmã, voltamos para casa a pé, depois de 15 dias fora, vindas de um outro logradouro, meu pai estava nos esperando no armazém, que ficava mais ou menos na metade do caminho, com dois guarda-chuvas, pois parecia que ia chover.” Segundo Eizirik, e Bassols (2013), dispomos de dados sobre o que é essencial para um bom desenvolvimento psicológico e o principal ingrediente são adultos que se responsabilizem pelas demandas básicas dos filhos de cuidados, de amor e limites, sem deixar de lado suas próprias necessidades. Esta mesma participante 4 trouxe também a questão dos limites: “A gente teve uma educação muito rígida. E daí, na mesa, quando tinha visita, o pai só olhava para nós e já entendíamos que tínhamos que nos comportar. E primeiro os mais velhos comiam, depois as crianças”. As famílias sofrem o impacto dos fenômenos sociais pertinentes de cada época (Eizirik, & Bassols, 2013). Na fala da participante 7, percebemos que o trabalho do pai, para gerar renda e prover sustento da sua família, não está alheio à presença da criança que está sob seus cuidados: “Daí o pai fazia essas pedras grés para fazer casas e isso eu fazia com ele. Eu ia junto com ele para fazer companhia, mas eu estava interessada mesmo era na merenda”. A memória desta participante reflete o amor e zelo de seu pai, além do compromisso dele com o trabalho. Segundo Martins e Eidt (2010), é por meio da brincadeira que a criança busca fazer aquilo que os adultos realizam e, nesse processo, descobre uma nova necessidade: a de saber aquilo que os adultos sabem. A participante 7 nos trouxe: “Certa vez ele me deu um
martelinho para eu brincar e eu comecei a imitá-lo e ele disse: ‘Mas olha, você faz melhor que eu’, e fizemos juntos, pedras para uma casa inteira”. As primeiras experiências da infância influenciam fortemente os padrões de interações e relacionamento do adolescente, do jovem e do adulto (Fadimam, & Frager, 2004). A estrutura e o funcionamento familiar modificam-se ao longo do ciclo vital para adequarem-se às mudanças em seus membros e às vicissitudes da vida (Eizirik, & Bassols, 2013). Na fala da participante 4, podemos perceber a resiliência e atitude proativa diante da necessidade familiar em constituir uma renda que pudesse garantir o sustento: Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos 419 “Quando eu tinha 16 anos, meu pai faleceu e eu estava num colégio interno e tive que sair de lá, pois não tínhamos mais dinheiro para pagar meus estudos. Meu pai queria muito que os filhos estudassem e sempre nos ensinou a importância disso. Mas antes de morrer, ele colocou os bens e a empresa no nome do meu tio, pensando que ele seria uma boa pessoa e iria nos ajudar, mas foi justamente o contrário, ele ficou com tudo e nos deixou sem nada. E a minha mãe, com 5 filhos, nunca tinha trabalhado na vida. Bom, como eu tinha já o curso ginasial, um amigo do meu pai, que era
metido com política, me arrumou o trabalho de professora.” Nesse sentido Eizirik, e Bassols (2013) reforçam a ideia de que: A família precisa manter um equilíbrio dinâmico entre dois grupos de características psicológicas complementares, o que favorece a resiliência. O primeiro grupo é formado principalmente de valores autoafirmativos, que incluem iniciativa, independência, criatividade, humor e flexibilidade. O segundo engloba necessidades integradoras, tais como visão de mundo compartilhada, cooperação, altruísmo e espiritualidade (Eizirik, & Bassols, 2013, p. 100). No que concerne à criatividade que os autores acima citados nos colocam, a
participante 3 nos trouxe que seu pai estava também preocupado em oferecer experiências importantes ligadas à criatividade: “Quando o meu pai me colocou no colégio, ele me mandou fazer aulas extras, então ele pediu pintura. Frequentei aulas de pintura e bordado. E depois que eu saí do colégio, ainda eu fui a Porto Alegre ter novas aulas de pintura. Meu pai achava importante”. O processo de transmissão entre as gerações sustenta valores, crenças e diversos saberes que asseguram a continuidade grupal e cultural como a tradição; porém, esta transmissão direta foi considerada insuficiente como resposta para a questão da continuidade da vida psíquica entre as gerações (Correa, 2003). Na fala da participante 8, percebemos seu entendimento sobre a maneira do pai expressar seu amor, tendo isto como fonte de alimentação sobre aquilo que percebia que vinha por conta do real amor pelos filhos: “Meus pais eram cultos, mas tinham dificuldade de demonstrar seus sentimentos. Meu pai fazia tudo por nós e, a maneira dele de demonstrar o amor, era dando as coisas, provendo. Eu tenho que agradecer os meus pais,
porque eu nunca precisei trabalhar para estudar. Eu estudei a vida inteira em bons colégios, eu estudei em colégios particulares.” Uma família pode ser entendida como um modo nuclear da sociedade, em que são montados estofos de identificação com os pais, com ideais apontados por estes. Sobre esta infraestrutura serão construídos os elementos superestruturais egoicos e socialmente determinados (Machado, & Bandeira, 2012). Na fala da participante 4, percebemos que o valor que seu pai sustentava sobre a cultura foi legado importante e apreciado por ela: “Meu pai gostava de música, então fui interna no colégio das freiras porque lá tinha aula de pintura, artes culinárias e música, tudo isso. Nós íamos no cinema, teatro, todas as oportunidades que tinha, meu pai fazia questão de que nós vivenciássemos”. A participante 7 nos trouxe na sua fala: “Eu sempre tive sorte de que os meus pais me ensinaram que Deus está sempre com a gente, se a gente faz o que ele manda. A mãe sempre dizia ‘o homem pensa mas Deus guia’ ”. Nesta expressão compreendemos a importância da transmissão dos valores pela família para a formação do indivíduo. O bem-estar da família depende muito da qualidade das relações dos adultos. Já está demonstrado que a satisfação com a relação conjugal está associada com o desenvolvimento não só de uma prole psicologicamente saudável, mas também da saúde física de todos (Eizirik, & Bassols, 2013). A participante 3 nos trouxe sobre a importância do amparo de sua família de origem no começo da sua vida de casada: “No início, moramos na casa do pai, para não pagar aluguel. Então, a gente aproveitou bem o que o pai nos deu e só depois a gente comprou aqui e ficamos aqui. E é já era nosso, mas ainda assim o pai continuava a ajudar. Como nós não tínhamos condições, o pai fazia todas as compras que nós precisávamos e ele trazia, porque ele tinha condução. Ele ia passear e nos levava junto, então isso tudo foi maravilhoso para nós. Então isso tudo ajudou, e eu acho assim, que eu não posso me queixar.” Vivemos numa sociedade em que tudo se processa num ritmo muito rápido, com ênfase no visual e sonoro, e onde o habitat silencioso é um fato do passado. A cultura do
descartável, impulsionada pela máxima do consumismo, passa a ser modelo que também influenciará os relacionamentos (Gomes, & Paiva, 2003). Outra participante, a 5, também nos trouxe sobre a ajuda prestada pela sua família de origem no momento do início de sua trajetória profissional: “A minha mãe morava perto de nós e toda a família também; então isso era muito legal. Hoje como está o mundo, eu não sei se conseguiria fazer o que fiz há
Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos”. O psiquismo familiar pressupõe investimentos libidinais entre os sujeitos do grupo e, evidentemente, uma psicodinâmica dos vínculos, responsável, entre outras coisas, pela criação dos lugares, posições e, principalmente, pelas funções exercidas no espaço interpsíquico (Passos, & Polak, 2004). Os estudos demonstram a importância da boa relação de casal para a saúde mental e para o sentimento geral de felicidade das pessoas (Eizirik, & Bassols, 2013). Evidentemente comentamos aqui sobre mulheres que entraram no mercado de trabalho; portanto, tiveram que
administrar suas vidas concomitantemente com várias funções sociais. A participante 4 nos trouxe a importância da compreensão de seu trabalho por parte de seu marido e participação ativa dele na composição da sua família:
“Ele (o marido) era muito companheiro dos filhos e meu também. Daí como eu trabalhava muito, ele fazia tudo em casa. Eu fazia as bolachas e ele pintava e ensacava. Ele lavava a nossa roupa e fazia a nossa comida. Ele ia
no mercado e tudo era com ele. Tanto que, quando ele ficou doente, eu não sabia o que era comprar 1kg de arroz no mercado. Essa parte ele assumiu. Então, nós nos dávamos bem. Eu não tinha esse problema em casa.” O processo de emancipação feminina na segunda metade do século XX, a luta por igualdade das mulheres, trouxe novas dificuldades para os lares. Mesmo tendo ajuda dos parceiros nas tarefas domésticas, as mulheres é que continuam enfrentando a dupla jornada de trabalho (Eizirik, & Bassols, 2013). A participante 3 nos trouxe uma passagem que denota a participação e cumplicidade do seu marido na criação dos filhos: “E quem ficava com ela (a criança) de noite para eu ir trabalhar? Ele (o marido) que ficava com ela de noite! Sim, ele ficava com ela! Uma vez,
quando ela tinha 3 aninhos, ela fugiu dele! O colégio em que eu trabalhava era perto e o pai estava distraído e não viu que ela foi até lá me ver. Saudade que ela tinha de mim! Imagina, eu tava o dia todo fora e a noite também. As famílias reagem às crises, e mesmo às doenças físicas, com padrões de comportamento que se constroem ao longo da vida. São decorrentes da biologia e das condições socioeconômicas que se desenvolvem (Eizirik, & Bassols, 2013). Podemos perceber na fala da participante 6 o importante incentivo que veio por parte de seu marido num momento de crise e definição por um caminho na sua vida: “A gente não tem coragem de tomar certas atitudes, daí ele (o marido) me deu aquele empurrão no momento certo. Ele (o marido) disse assim ‘tu tens que pintar! Acho que é importante fazer aquilo que tu gostas’. Daí eu comecei a fazer essas coisas. Foi importante, sim, ele me dizer isto”. Os estudos que focalizam a relação família-sujeito delineiam um terreno em que alguns indicadores se apresentam como parte do processamento psíquico inerente à formação do sujeito na família. A questão da identificação tem sido apontada como central nesse processamento, na medida em que se constitui como dispositivo necessário à formação dos vínculos entre os membros do grupo familiar (Passos, & Polak, 2004). Na fala da participante 6 percebemos a importância do reconhecimento dos seus filhos: “Meus filhos me deram muito apoio, reconheceram o meu trabalho”. A história familiar precedente servirá de base para que o indivíduo retire dela material necessário às suas fundações narcísicas, como vetores da subjetividade. Ele recebe não só
uma herança intergeracional ⎯ vivências psíquicas elaboradas, tais como fantasias e identificações que se fundam em uma história familiar ⎯, como também uma herança transgeracional (Passos, & Polak, 2004). A participante 7, nesta fala, expressa, não só suas memórias e experiências da sua infância, mas a satisfação de tê-las tido: “Tive uma infância feliz! Isso que eu gostaria de dizer pro mundo inteiro, mas eu não posso falar porque não tenho diploma e falo errado, talvez não fossem me entender”. O prazer de expressar desta forma simples e direta nos remete à fala dos autores acima colocados quando nos trazem sobre a importância da história familiar para o indivíduo. Esta participante revela também, nesta fala, o seu problema de sentir inferioridade em função da sua linguagem. Levando-se em conta a cultura, as pessoas podem preferir experimentar e sentir emoções positivas e evitar as emoções negativas. De qualquer forma, cada cultura possui diferentes maneiras de fazer as pessoas acreditarem que podem superar suas emoções negativas (Miyamoto, et al., 2013). O grupo familiar é um espaço psíquico comum (intersubjetividade) que possibilita a passagem da transmissão psíquica entre as gerações através de diversas modalidades. Este espaço é delimitado por um envoltório de essência genealógica que se processa em contínua evolução, podendo ser modificado pelos acontecimentos internos ao grupo (Correa, 2003). A fala da participante 1 nos traz: “Eu fui mãe muito jovem, meu filho fez uma cirurgia no cérebro com três anos, eu tinha 21 anos. E eu prometi que se meu filho tivesse bem, eu ia me dedicar para quem precisasse de mim e assim eu fiz”. A participante, em um momento especial de sua vida, pôde compreender a importância do amparo familiar e a partir disso Família, trabalho e lembranças: um estudo na cidade de Ivoti (RS) com mulheres acima de 60 anos 419
decidiu propiciar àqueles pais, cujos filhos estivessem atravessando problemas de desenvolvimento, um apoio, estendendo então, sua ajuda. Os estudos sobre a transmissão psíquica se fundam na articulação entre as perspectivas estruturais da família, ou seja: por um lado, a dimensão intragrupal (atual) definida pelo grupo
(pais/crianças) e, por outro, a dimensão geracional (Passos, & Polak, 2004). Ressalta-se que a estrutura familiar coerentemente manifestada corrobora com os desejos de boas solidificações nos próprios caminhos. Percebemos que as histórias familiares foram contadas com prazer e agradecimento aos antecessores e reais parceiros de vida.
Conclusão
Esta pesquisa trouxe conhecimento sobre as vivências no mundo do trabalho de mulheres acima de 60 anos, residentes no município de Ivoti (RS) que se mantêm ativas economicamente. Pôde-se perceber que, nas suas falas, estavam contidas muitas emoções quando se referiam aos eventos familiares e às implicações que estes surtiram nas suas vidas, além da sua real satisfação com aquilo que a vida lhes propôs; há, portanto, um senso de
pertencimento ao mundo da vida. Sem dúvida, sabe-se que o avanço da idade não estabelece uma relação positiva em relação ao desejo das pessoas acima de 60 anos em se inserir ou permanecer no mercado de trabalho; contudo, a experiência de um envelhecimento ativo, inclusive economicamente, permite que as mesmas mantenham-se integradas ao meio social. Para as idosas pesquisadas, o trabalho e a família são elementos que as mantêm ativas no campo social, tornam-se menos marginalizadas e, sem dúvida, mais felizes; assim, a permanência destas mulheres no mercado de trabalho está intimamente ligada à satisfação quase que inerente aos seus próprios feitos, pois além de lhes proporcionar grande prazer, esta satisfação é, por elas mesmas, transformada em retroalimentação e estímulo para a continuidade na opção de estar ativa. Por fim, entre o que é foi dito e o que ficou silenciado, dá-se a visibilidade dos diferentes sentidos, representações e concepções que possuem enquanto mulheres que são capazes de articular saberes e poderes no mundo. A consciência “do que são”, que lhes confere autoria de um ativo processo emancipador, não apenas nas suas ações, mas num
discurso argumentativo que sensibiliza quem as escuta.
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Recebido em 15/04/2015
Aceito em 30/09/2015
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Berlize Regina Elias Anschau – Psicóloga, Universidade Feevale. Novo Hamburgo, RS,
Brasil.
E-mail: berlizeeliasanschau@gmail.com
Sueli Maria Cabral – Socióloga. Doutora em Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação
da Universidade do Vale dos Sinos. Professora Adjunta da Universidade Feevale.
E-mail: suelicabral@feevale.br
Gilson Luís da Cunha – Biólogo. Doutor em Genética e Biologia Molecular. Programa de
Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, Universidade Feevale.
E-mail: gilsonlcunha@gmail.com
Maristela Cássia Peixoto – Enfermeira, Especialista em Gestão dos Serviços de Saúde.
Docente da Universidade Feevale. Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e
Inclusão Social, Universidade Feevale.
E-mail: maristelapeixoto@feevale.br
Eliana Perez Gonçalves de Moura – Psicóloga. Doutora em Educação. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social, Universidade Feevale.
E-mail: elianapgm@feevale.br
Geraldine Alves dos Santos – Psicóloga. Especialista em Gerontologia Social. Doutora em
Psicologia. Pós-Doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Pesquisadora do
Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural e Inclusão Social. Professora titular da
Universidade Feevale.
E-mail: geraldinesantos@feevale.br”